Capítulo 2 - Um Refúgio no Paraíso
Capítulo
2
A dor a
despertou.
Sua mente estava
entorpecida por uma névoa que a mantinha protegida da realidade que a aguardava
quando abrisse os olhos. Estranhamente, em algum recanto escuro dentro de sua
cabeça, podia ouvir uma canção suave embalada por uma rouca voz feminina.
Para preservar a
própria sanidade, ela precisou obrigar-se a empurrar todo o seu passado para um
lugar escuro dentro de si. Provavelmente aquela música vinha de alguma
lembrança doce e feliz que deve ter escapado de seu confinamento em algum
momento entre os socos e os choques elétricos que os russos a submeteram quando
a interrogaram. Podia sentir a gravidade da sua instabilidade mental, as memórias
estavam começando a deslizar pelas beiradas, como raios de sol lutando contra o
inverno que a congelava até a alma.
Aquilo não podia
acontecer. Só Deus sabia o que restaria dela se permitisse agarrar-se a algum
conforto. Sua salvação estava na dor, na raiva e no ódio, não em um passado distante
demais para ser recuperado. E ela iria precisar de todos os seus sentidos
racionais para encontrar uma saída daquele lugar antes que os russos voltassem
com novos brinquedos.
Não havia uma
única parte do seu corpo que não estivesse latejando, e isso era um bom sinal.
A dor significava que ainda estava viva, e enquanto seu coração continuasse
batendo e seus pulmões respirando, ela iria lutar.
Abriu os olhos e
encarou a situação. Estava jogada no chão como uma boneca esfarrapada, o
cimento frio oferecia certo alívio contra sua pele nua. Não precisava de um
espelho para saber que seu rosto estava completamente desfigurado.
Haviam dirigido
pelo que lhe pareceu horas por uma estrada precária e apenas tiraram sua venda
quando a jogaram naquele buraco. A bile queimou o caminho por sua garganta
quando inspirou o forte odor de urina e mofo.
Alguns gemidos
ecoavam além da porta de ferro com uma pequena portinhola que usavam para
observá-la a cada hora e lhe entregar um pão velho e um copo de água. A fraca
luminosidade que banhava sua cela vinha da lâmpada tubular que piscava do
corredor, clareando os respingos de sangue e as marcas de unhas nas paredes. Nem
mesmo o seu treinamento SERE[1] poderia
ajudá-la a escapar. Mesmo com seu impressionante QI de três dígitos, seria
necessário uma incrível dosagem de inteligência, originalidade e fé. E um
milagre.
A dor em suas
costelas fez seu corpo inteiro estremecer, e as correntes em seus pulsos
tilintarem quando tentou se levantar. Suspirando lamentavelmente, ela decidiu
ficar exatamente onde estava, não era como se estivesse indo correr uma
maratona caso conseguisse ficar de pé. Se suas contas estivessem certas, estava
ali há quase uma semana e já havia sido submetida a três interrogatórios. Não
deveria ter se surpreendido quando os russos a prenderam em correntes acopladas
ao teto para suspendê-la.
Quando eles a
visitaram pela primeira vez, ela foi capaz de dar uma boa olhada em cada um,
observando suas diversas tatuagens e as armas que empunhavam. Foi o homem com
um arame farpado tatuado no pescoço que se aproximou e ela reconheceu
imediatamente o cheiro azedo de seu hálito quando ele rosnou:
— Quem é você? —
A pergunta feita em inglês serviu para alertá-la que eles já desconfiavam de
sua cidadania.
— Duschka[2].
Os olhos negros
dele arderam perigosamente antes de suas mãos cobertas por desenhos de runas
agarrem a lapela do uniforme dela e arrancá-lo em um único puxão.
— Duschka
— repetiu ele, agarrando a gola de sua camiseta. As correntes rangeram quando
seu corpo balançou no ar. — Vamos tentar mais uma vez. Qual é o seu nome?
— Foda-se.
O som do tecido
de sua camiseta sendo rasgado quase a fizeram gritar, mas quando seu sutiã foi
arrancado e o ar frio da cela roçou contra seus mamilos, suas cordas vocais
congelaram.
— O chefe disse
para não marcá-la, Ivan — a voz arrastada veio de algum canto da cela.
— Estou apenas
deixando a vadia confortável — sussurrou Ivan. — Você está confortável, duschka?
— A hospitalidade
de vocês é uma merda — ela vociferou.
Risadas ecoaram
ao seu redor. Ivan deu mais um passo em sua direção, maldade crua cobrindo seu
rosto em uma expressão assustadora.
— O chefe sempre
gostou de ser o primeiro a se divertir com as garotas, e até ele chegar, farei
de tudo para tornar a sua estadia aqui inesquecível. — Ele agarrou em de seus
seios, o aperto doloroso a fazendo estremecer.
— O pau dele é
algum tipo de recepção de boas-vindas? — Ela teria sentindo orgulho do seu tom
de voz controlado em outro momento. Não havia nada mais difícil do que
demonstrar coragem onde só existia medo.
— Algo assim — Ivan
ergueu os olhos de seu corpo e passou a admirar seu rosto, desejo inflamando
suas íris negras. Quando ele lhe ofereceu um sorriso, ela soube que estava
condenada. — Tragam-me os brinquedos.
O cassetete foi
usado para iniciar as longas horas de surras que se seguiram, acompanhado uma
sequência incessante de perguntas.
Ivan estava encharcado
de suor quando finalmente decidiu usar o chicote de três pontas. O couro
estalou no ar antes de atingir suas costas, o choque da dor lhe arrancou um
grito tão poderoso que ecoou por toda a cela.
— Qual é o seu
nome? —gritou ele, estalando o chicote novamente. — Para quem você trabalha? —
de novo. — Para onde levaram as garotas? — e de novo.
Seu corpo
balançava no ar como um galho quebrado, o sangue escorrendo e formando uma poça
vermelha no chão. Seu cérebro acionou sua inconsciência como válvula de escape,
e sua cabeça tombou para frente.
Quando a escuridão
a acolheu, as imagens começarem a surgir. Lentamente, o rosto de um pai
orgulhoso ganhou forma, seguido pela fisionomia de dois homens mais jovens. Ela
reconheceu de imediato os rostos de Sam e Wade, e então uma nova dor a acertou.
Como um clarão,
as lembranças começaram a surgir. Uma vida feliz. Uma vida onde ela era uma
mulher que sorria todos os dias e não tinha a menor ideia do quanto sua
ingenuidade era patética.
Ela precisou se
tornar um monstro para eliminar outros. Precisou se tornar em seu pior
pesadelo. Não há como lidar com traficantes e mafiosos oferecendo um buque de
flores. A única forma de fazê-los entender a mensagem era colocando o cano de
uma arma entre seus olhos, e ela havia feito o seu dever de casa quando começou
a explodir cartéis de drogas.
Farfalla[3].
Uma voz de barítono soou no meio do caos de sua mente como uma explosão de
calor, abalando todas as suas estruturas. Farfalla.
A palavra ecoou ao mesmo tempo em que ela ouvia a própria voz sussurrando: Marco.
A imagem de um
novo homem começou a ganhar forma. Uma estrutura corporal impressionante,
ombros largos e braços fortes. O cabelo longo roçando na base de seu pescoço, e
olhos verdes tão claros quanto duas esmeraldas. E ele estava sorrindo. O mesmo
sorriso que ele sempre dava quando a via.
Kate, ele a chamou.
Suas estruturas
romperam como o desmoronamento de uma barragem, e ela finalmente se permitiu
lembrar de tudo. A música voltou a soar, as palavras românticas embalando
aquele momento como o trailer de um
filme. Foi capaz de reconhecer a voz melódica de Nina Simone. Seria cômico se
não fosse trágico que estivesse finalmente recordando de sua família e do homem
que amava em um dos mais decadentes momentos de sua falsa vida.
Mas o mais
importante, Kate estava recordando de si mesma.
Ela não estaria
ali se não fosse por sua ambição de unir-se às Forças Especiais e deixar de ser
vista como o sexo frágil. Crescer rodeada de testosterona fora um dos
principais motivos que a fizeram desejar ser vista como alguém capaz de cuidar
de si mesma. Wade, Samuel e Marco foram SEALs condecorados, enquanto ela fora
designada para lidar com a papelada do gabinete de Inteligência da Marinha. Não
importava o quanto suas notas e seu desempenho fossem impressionantes e
revelasse que tê-la atuando em campo seria um trunfo.
Ela não era um
homem.
Seus sonhos a
levaram até aquele momento. Longe de sua família, refém de traficantes russos,
nua, torturada e humilhada. Sua experiência aniquilava qualquer ilusão de que o
Comandante gastaria recursos para resgatar uma agente considerada morta.
Após desmaiar
por causa da exaustão e da dor, os russos a deixaram em paz pelo resto do dia,
mas eles voltaram no dia seguinte para um novo interrogatório que quase a fez
perder os dentes e vomitar as tripas. Como prometido, nenhum deles tentou
estuprá-la, mas isso não os impediu de tentarem assustá-la com promessas que
teriam feito alguém mais fraco começar a chorar como um bebê.
Era uma questão
de tempo até o chefe chegar. E quando o miserável finalmente aparecesse, Kate
faria questão de que o chefe de toda aquela organização criminosa estivesse ao
seu lado quando descesse para o inferno.
Tudo o que
precisava fazer era continuar suportando.
Ela estava quase
adormecendo, ansiosa para reencontrar sua família em seus sonhos, quando o som
de passos no corredor a alertaram. Seus olhos mantiveram-se fixos no teto
quando ouviu o manuseio do trinco e, em seguida, o chiado enferrujado quando
abriram a porta da cela.
Três homens
armados entraram e se posicionaram ao seu redor antes de Ivan caminhar em sua
direção. Ela podia sentir a força do sorriso dele sem precisar encará-lo.
Péssimo sinal.
— É ela? — uma voz veio da
porta.
Pelo canto dos olhos, Kate
conseguiu visualizar o contorno escuro de um homem com o rosto tomado pela
penumbra. A luz vinda do corredor iluminava seus ombros e o colarinho do terno.
— Sim, chefe.
Nem sempre a sabedoria
podia ser considerada uma dádiva, especialmente quando você tinha uma ficha
completa a respeito de seu carrasco em sua mente. Kate vasculhou todas as
informações que tinha sobre Yosef Volk[4] Sardov. Um medo
diferente percorreu sua espinha, e pela primeira vez, o pavor estava refletindo
em seus olhos.
O líder do Bratva havia
chegado.
[1]
SERE: Programa militar de Sobrevivência, Evasão, Resistência e Fuga.
[2]
Querida, em russo.
[3]
Borboleta, em italiano.
[4]
Lobo, em russo.
1 comentários:
Write comentáriosPUTA QUE PARIU.
ReplyEU
NÃO
ESTOU
BEM
SOCORRO. PRECISO DE MAIS.
COMO LIDAR? :O